Guia de Leitura à “História da Sexualidade” (Michel Foucault): resumo-síntese dos 3 volumes — por Guilherme Almeida

Guilherme Almeida
20 min readApr 9, 2021

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Introdução

Os três volumes da História da Sexualidade marcam um conhecido deslocamento nas pesquisas e no pensamento de Foucault: se antes pode-se dizer que o ‘eu’ individualizado aparecia de relance em suas obras arqueogenealógicas como um dos eixos do poder, no sentido da subjetividade normal/normalizada, os relatos de sua produção, a partir dos anos 80, passam a ser investigados por ‘de dentro’. Uma primeira consequência é que o primeiro plano não será ocupado tanto mais pelas estratégias do poder, mas pelas ditas ‘tecnologias do eu’. Foucault estaria aí, na verdade, menos interessado no poder, por si só, do que no papel do poder na emergência do sujeito moderno. “Quando eu estava estudando os asilos, as prisões, etc — disse Foucault em 1981 — talvez tenha insistido demasiadamente nas técnicas de dominação (…) Eu gostaria, nos anos vindouros, de estudar as relações de poder partindo das técnicas do eu”.

O objetivo declarado de História da Sexualidade é, portanto, esmiuçar o discurso sobre sexo em sua relação com tais “técnicas polimorfas do saber-poder” constituídas da Antiguidade Clássica, indo até os primeiros séculos do Cristianismo, cotejando-as e também as distinguindo em seus deslocamentos e transformações na dobra que opera entre o campo social e formação dos sujeitos. Não exatamente o sexo como prática ‘per se’: mas o sexo como prática discursiva multiforme e seus efeitos de subjetivação, seu papel histórico neste aspecto.

A vontade de saber (Vol. 1)

(1) No primeiro volume, A Vontade de Saber, a Renascença serve (tal como em sua História da Loucura) para realçar uma mudança importante nas atitudes e disposições do discurso ocidental em relação ao sexo. Desde o século XVI, novas técnicas para interiorizar as normas referentes à moral e ao comportamento sexual foram se desenvolvendo. Tratou-se aí, também, de uma intensificação do dispositivo da ‘confissão’ como decisivo ritual de produção de verdade. Em termos gerais, uma mutação se consolidou a partir de meados do século XVI: “O individuo, durante muito tempo, foi autenticado pela referência dos outros e pela manifestação de seu vínculo com outrem (família, lealdade, proteção); posteriormente, passou a ser autenticado pelo discurso de verdade que era capaz de ter sobre si mesmo”. A exemplo do que ocorrera internamente nos códigos clericais com o Concílio de Trento (1545–1563), onde se adotou novos procedimentos para a a purificação do clero, com técnicas minuciosas de autoexame, de confissão e de direção da consciência utilizadas em seminários e mosteiros, os leigos da sociedade civil foram convocados a se confessar com uma frequência maior e nunca antes vista. Até a Contra-Reforma tridentina, a Igreja supervisionava a sexualidade à distância, com confissões apenas anuais e que não circunscreviam o comportamento sexual como algo a ser inspecionado em específico.

(2) O sujeito moderno foi assim sendo convertido num praticante da arte de esmiuçar o pecado como intenção, ao mesmo tempo que deveria atentar para os sentimentos de conflito (“a carne”). A tal conduta confessional teria se tornado parte integrante da vida moderna:

“A confissão difundiu amplamente seus efeitos: na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes; confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos, confessam-se passados e sonhos, confessa-se a infância, confessam-se as próprias doenças e misérias (…) fazem-se a si próprio, no prazer e na dor, confissões impossíveis de confiar a outrem, com o que se produzem livros (…). O homem, no ocidente, tornou-se um animal confessante”.

(3) Adiciona-se que, desde o século XVIII, a demografia e a administração pública tomaram por objeto de estudo as populações, a disseminação de doenças, a prostituição, etc: “O sexo não se julga apenas, administra-se”. Criou-se uma “anatomopolítica” — uma política do corpo — e uma “biopolítica” — o planejamento da população. As ciências humanas, a medicina e a demografia teriam capturado o corpo confessado, produzido pelas práticas do clericalismo difuso, como objeto de preocupação social e governamental; celebra-se aí, uma vez mais, a aliança crucial entre o poder e o saber.

(4) Todavia, a ênfase de Foucault vai além: é que a sexualidade tornou-se parte de um discurso generalizado da verdade a respeito do indivíduo, mostrando-se com um potencial quase ilimitado para as estratégias do poder social. O sexo como epítome da individualidade. Enquanto o Oriente teria criado uma ars erotica impessoal e sofisticada, a cultura ocidental moderna teria elaborado uma scientia sexualis mais voltada para o controle personalizado do que para as habilidades do prazer.

(5) Como é notório, Foucault não concordava com a hipótese de que a sociedade moderna teria como cerne do seu desenvolvimento a repressão sexual. Ao contrário, Foucault explorou a hipótese oposta, a de que o poder que incide na sexualidade moderna não é do tipo repressivo, mas produtivo. Conforme afirma numa célebre entrevista a Bernard Henri-Lévy, “os poderes dominantes parecem já não temer o sexo”. Mesmo no século XIX, a Era Vitoriana, o decoro e a repressão eram, em grande medida, muito mais um mito do que uma poderosa realidade efetiva. Pois, para Foucault, o moderno controle da sexualidade seria menos uma arma contra as classes subalternas e inferiores do que uma autoidealização da burguesia. Mais do que domar o sexo, trata-se de verificar como foi inventado o discurso sobre a sexualidade e as práticas discursivas associadas que estariam sustentando a emergência da noção de indivíduo e sujeito modernos. É a posição metodológica de Foucault.

(6) Do começo ao final de A Vontade de Saber, Foucault alerta contra a propensão de se colocar o sexo ao lado da realidade e a sexualidade ao lado das ideias. Como provocou numa entrevista chamada A Confissão da Carne, onde aponta uma distinção que compõe, todavia, um mesmo dispositivo: “Temos tido sexualidade desde o século XVIII e sexo desde o XIX. O que tínhamos antes era sem dúvida a carne”. Quanto a noção de ‘dispositivo’ em Foucault, cumpre recordar: trata-se, para ele, de “estratégias de relações de forças que sustentam tipos de saber e por eles são sustentadas”. Nesse sentido, o que Foucault chama de dispositivos são tanto o que é discursivo como o não-discursivo — instituições, leis, medidas administrativas, afirmações científicas, inciativas filantrópicas, etc. Não possuem espaços institucionais bem definidos, mas antes operam por dispersão nos poros de uma da sociedade ou parte dela.

(7) O capítulo final de A Vontade de Saber contrasta duas eras culturais: em um passado mais distante, as ‘sociedades de sangue’, definidas por uma ética marcial, o medo da fome e a punição como tortura; e mais recentemente, uma ‘sociedade de sexo’, a cultura científica da biopolítica e das disciplinas normalizantes. Porém, Foucault introduz nos volumes seguintes um novo corte genealógico, recuando até a ascensão do cristianismo na Antiguidade tardia. Vejamos.

O uso dos prazeres (Vol. 2)

(1) Na sua introdução, a História da Sexualidade buscava compreender como surgiu na moderna cultura ocidental uma experiência da sexualidade: Foucault não almejava empreender nem uma história das ideias sobre o sexo nem uma história das mentalidades. Desejava se ater a análise histórica de uma experiência: a consciência que o indivíduo tem de si mesmo como sujeito de uma sexualidade. O surgimento de tal experiência parecia a Foucault um fenômeno do século XIX, que mais ou menos coincidiria com a moderna episteme histórica, a psiquiatrização da loucura e a difusão das prisões — para lembrarmos seus esforços historiográficos anteriores. Na introdução do volume dois, O Uso dos Prazeres, Foucault afirma que seu projeto original visava correlacionar, dentro de uma determinada cultura, “campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade”, ou ainda, seus diferentes “jogos de verdade” que operavam em cada uma destas dimensões. Além disso, afirmava que, enquanto havia investigado a formação de saberes correlacionados com o poder e a subjetividade em obras como História da Loucura ou Vigiar e Punir, o exame das formas de auto-reconhecimento dos sujeitos-do-desejo-e-do-prazer ainda estaria por ser feito. Mas por que exatamente a experiência do sexo e não a da alimentação, por exemplo?

(2) A resposta de Foucault a esta questão é desestabilizadora e pouco comum: porque, segundo ele, a preocupação moral com a sexualidade é mais forte justamente onde não existe qualquer obrigação ou proibição relativa ao sexo. Deixando de lado as proibições e as interdições, ele preferiu partir em sua pesquisa pelos inícios heterogêneos no ocidente das “técnicas de si”. Como o próprio Foucault afirma e declara: “Fui levado a substituir uma história dos sistemas de moral, feita a partir das interdições, por uma história das problematizações éticas, feitas a partir das práticas de si.” Daí o subtítulo do segundo volume, O Uso dos Prazeres. Um empréstimo, na verdade, da terminologia hedonística da Grécia Clássica, “chresis aphrodision”, isto é, o uso dos prazeres.

(3) Nos volumes segundo e terceiro, portanto, Foucault discute documentos de um determinado tipo: antigos textos prescritivos (diálogos, tratados, coleções de preceitos) que procuravam basicamente propor regras de comportamento sexual. Tais textos atuariam como operadores que possibilitavam aos indivíduos questionarem sua própria conduta, a fim de construírem sua ‘etopoética’. O interessante é que Foucault começa por questionar as supostas diferenças entre a cultura pagã e a cultura cristã neste aspecto.

(4) Onde se situaria a principal clivagem entre a moral sexual pagã e a moral sexual cristã? Muitos antes de Foucault, partia-se historicamente do senso comum em afirmar que, enquanto na Antiguidade pagã o sexo teria um significado positivo, o cristianismo teria o associado ao mal e ao pecado; ou que, para os cristãos, os únicos parceiros sexuais legítimos seriam o casal monogâmico, voltados exclusivamente para a procriação, ao passo que os antigos pagãos teriam uma concepção mais ‘liberal’, aceitando por exemplo relações masculinas homoeróticas. Foucault, todavia, busca mostrar evidências que contradizem este clichê: na realidade, a antiga ética sexual no Ocidente pagão seria bem menos permissiva ou dionisíaca. Antes do Cristianismo já havia prescrições que atribuíam conotações negativas ao sexo, que dirá à licenciosidade sexual que aí se idealiza neste clichê. O mundo antigo pagão também exaltava o casal monogâmico como o modelo para o amor e até mesmo se louvava por igual a castidade e a abstinência em preceitos do paganismo ocidental primitivo. Por exemplo, já havia um vínculo claro e estabelecido entre a abstinência sexual e o acesso a Verdade, bastante visíveis nos relatos de Sócrates retratado por Platão.

(5) Foucault habilmente ilustra esta difícil questão histórica citando uma passagem interessante de “Introdução à vida devota”, de São Francisco de Sales (1609): “Contar-vos-ei um exemplo da honestidade do elefante. Um elefante nunca troca de fêmea. Ama-a com ternura. Com ela não tem comércio carnal salvo a intervalos de três anos. E isso por apenas cinco dias, e tão secretamente que jamais alguém viu este ato. Entretanto, no sexto dia ele reaparece e a primeira coisa que faz é dirigir-se a um rio e lavar o corpo, não querendo retornar a seu bando antes de se purificar. Não são essas boas e honestas qualidades de um animal de molde a ensinar pessoas casadas não se entregarem demasiadamente a prazeres sensuais e carnais?”
Normalmente se pensa que nenhum texto parece mais ‘cristão’ do que este. No entanto, segundo Foucault, temos aí apenas a variação moderna e cristã de um tema clássico e igualmente pagão. Plínio, o Velho, naturalista que morreu na erupção do Vesúvio em 79 a.c, relata como ficou impressionado com a moral sexual dos paquidermes em sua História Natural. Mesmo que não recomendasse a pureza casta dos cônjuges como regra geral, tal como São Francisco, Plínio manifestava claramente sua aprovação de um modelo de comportamento sexual igualmente encontrado em preceitos de outras escolas filosóficas pagãs à sua época. Inúmeros outros textos gregos e romanos retratam preceitos similares ao rigorismo cristão neste aspecto.

(6) A grande diferença, para Foucault, é que as exortações à austeridade sexual dos antigos pagãos não se encontravam organizadas num código moral impositivo a todos. Eram tidas antes como um luxo para os poucos, em face das demais práticas correntes. Além do mais, do ponto de vista histórico, é preciso saber ver que as interdições legais e religiosas nem sempre coincidiram exatamente da mesma forma. O nível dos costumes, o nível dos códigos morais escritos e o nível ascético concreto no qual as pessoas se inseriam são três níveis diferentes, com pontos de contato, mas também com ponto de ruptura e bordas não-coincidentes.

(7) O segundo volume, intitulado Uso dos Prazeres, investiga a maneira como a medicina e o pensamento gregos abordavam a questão da ética sexual em 3 diferentes dimensões da experiência: a dietética (regime do corpo), a economia (administração da casa) e a corte amorosa. O objeto da ética sexual era ‘ta aphrodisia’, i.e., “as obras de Afrodite”. Foucault delineia a forma geral da aphrodisia grega sobretudo a partir dos relatos de Xenofonte, Platão e Aristóteles, compondo um campo de problematização da episteme erótica grega. Para o pensamento grego clássico, a inconveniência moral no sexo estaria no excesso e na passividade, não na coisa em si. O sexo em excesso era concebido como perigo em essência, e não como um mal intrínseco. Aulo Gélio e Hipócrates pensavam no orgasmo como algo que continha uma certa equivalência com a violência e desmedida na natureza. Daí inclusive a raiz comum de ‘aphrein’ (“espumar”) e ‘aphrodisia’ não passar despercebida na reflexão grega: não havia a própria Afrodite nascida por arte divina das espumas das ondas?

(8) O problema da ética sexual se resumia quase, pois, a um exercício de controle e domínio de si. A sabedoria prática da ‘phronesis’ estava em manter o desejo circunscrito a seus limites naturais para não recair na ‘hybris’. Um exemplo anedótico desta disposição comum entre as escolas gregas: Diógenes, o cínico, um dia desafiou a a moralidade pública masturbando-se ao ar livre. Díon de Prusa registrou sua justificativa: dizia Diógenes, o ‘Sócrates Louco’, que tal gesto poderia até ter evitado a Guerra de Troia caso Páris nele se inspirasse… (!)

(9) O sexo era considerado como uma prova de ‘enkrateia’ (domínio-de-si). Na “República”, Platão definia a virtude da temperança como uma espécie de ordem e controle sobre os prazeres e desejos. Na “Ética a Nicômaco”, Aristóteles sublinhava a natureza agonística da ‘enkrateia’, uma luta moral diferente da prudência e da ‘sophrosyne’, a plácida virtude pela qual se escolhem os atos de acordo com a fria razão. Os encráticos triunfam primeiramente sobre si próprios, sabendo dominar suas paixões a fim de seguir um meio-termo entre a devassidão e a sensibilidade. Os livres não devem ser escravos de seu próprio desejo. A liberdade começa em casa, com a alma; o homem encrático é imperador de si mesmo (‘basilikos heautou’). E a enkrateia implicava, claro, ascese (‘askesis’): pois, se a virtude é uma luta, dificilmente pode ser alcançada sem exercícios apropriados.

(10) Desse modo, a posição do cidadão livre da ‘pólis’ refletia-se no ideal moral do domínio das paixões. Contudo, essa ética do guerreiro aplicada à psique era um assunto eminentemente masculino na Grécia Antiga. Não por acaso, a terceira área da ética sexual que aí aparecia envolvia menos homens e mulheres do que o relacionamento de homens com outros homens. O amor na Grécia, em grande medida, era pensado a partir de uma ética da conquista entre rapazes. Foucault começa por observar que, na antiguidade clássica, o homem que preferia rapazes a mulheres não via a si próprio como um pervertido. O que importava, contudo, era o tipo de amor, e não seu objeto, se homem ou mulher. Decerto, os autores gregos tratavam com desprezo os efebos fáceis e efeminados, alvos do riso da antiga comédia: havia uma certa repugnância, não em relação ao homem que amava rapazes ou aquele que, na juventude, houvesse sido amado por um homem mais velho, mas sim em relação a confiar qualquer função de preeminência social a uma pessoa que se tivesse deixado ser apenas um objeto sexual — pois isto vinha de encontro a lógica de nobreza da ‘enkrateia’. Exemplo disto era a nítida distinção entre o papel do erasta — o homem mais velho apaixonado — e o do erômenos — o seu amado. Esperava-se que os erômenos não cedessem com excessiva facilidade aos agrados, quanto mais ao impulso sexual, de seus amantes, uma vez que, se o fizessem, imediatamente se desqualificavam como futuros cidadãos. O eros da pederastia era claramente assimétrico. Daí a preocupação, ilustrada na literatura, com a complexa psicologia envolvida pela honra dos rapazes — uma preocupação mais tarde transferida, no ocidente cristão, à moça ou jovem esposa, novos objetos de amor cortesão e das dissertações ético-eróticas.

(11) Esperava-se que as relações homossexuais se desenvolvessem como ‘philia’, amizade viril, isenta de aspectos carnais. De qualquer modo, os gregos menosprezavam a permanência destas relações na vida adulta: enamorar-se de rapazes que houvessem passado da adolescência não gozava de legitimidade na moral social, o ‘eros’ deveria ser convertido em ‘philia’. Consequentemente, as regras que prevaleciam entre eles pertenciam antes a uma estética existencial do que a um código moral coletivo. A erótica era isso: uma estilização da conduta, deixando espaço largo à ação livre.]

(12) O segundo volume da História da Sexualidade, O Uso dos Prazeres, termina com um comentário ponderado de Foucault acerca da erótica como ascese do sujeito e do acesso comum à verdade no corpus platônico:

“Essa reflexão filosófica a respeito dos rapazes comporta um paradoxo histórico. Os gregos atribuíram a esse amor masculino, e mais precisamente a esse amor pelos rapazes jovens comporta um paradoxo histórico. Os gregos atribuíram a esse amor masculino, e mais precisamente a esse amor pelos rapazes e pelos adolescentes, que a partir de então deveria ser, por tanto tempo e tão severamente, condenado, uma legitimidade onde nos é grato reconhecer a prova da liberdade que eles tinham nesse domínio. Contudo, foi a seu respeito, muito mais do que a respeito da saúde (com a qual eles também se preocupavam), muito mais do que a respeito da mulher e do casamento (por cuja ordem, no entanto, eles velavam), que eles formularam a exigência das mais rigorosas austeridades. É verdade que — salvo exceção — eles não o condenaram nem proibiram. Contudo, é na reflexão sobre o amor pelos rapazes que se vê a formulação do principio de uma ‘abstinência indefinida’: o ideal de uma renúncia cujo modelo Sócrates fornece com sua resistência sem falhas a tentação; e o tema dessa renúncia detém, por cima, um alto valor espiritual.” Para nós modernos é paradoxal ver em tal amor divergente “a necessidade de um combate difícil (...) consigo mesmo, a purificação progressiva de um amor que só se dirige ao próprio ser em sua verdade, e a interrogação do homem sobre si mesmo enquanto sujeito do desejo”.

(13) Em Platão, a erótica da Grécia Clássica foi sublimada. Nem mesmo em Platão, contudo, Eros renunciou a seu espírito sensual. Em última análise, o espírito clássico jamais separou o sexo e o amor do prazer; a libido por certo trazia em seu bojo graves perigos, mas não era vista como um poder estranho, estrangeiro ou hostil ao homem. Obedecer a ela, em vez de dominá-la ou em vez de ceder apenas quando o desejo tinha uma origem autêntica, significava auto-escravização; mas não era necessariamente uma mancha de condenação. Tudo isto seria modificado no período helenístico e mais tarde no Império Romano? Esta é a questão a que se dedica o terceiro volume da História da Sexualidade, com o título de “Cuidado de Si”.

O cuidado de si (Vol. 3)

(1) O terceiro volume, Cuidado de Si, parte da tradução da expressão socrática ‘epimeteia heautou’, transportado para o latim como ‘cura sui’, e investiga o assunto nos dois primeiros séculos da era cristã. Foucault percebe — na comparação com o pensamento clássico — uma desconfiança mais acentuada em relação aos prazeres, uma maior insistência em que os excessos seriam nocivos tanto ao corpo como à alma; uma maior valorização da conjugalidade e do casamento; e um evidente incremento na condenação da homossexualidade. De modo geral, é como se não tivesse havido qualquer fortalecimento dos códigos morais, mas uma intensificação das exigências de austeridade, enfatizando a importância do autocontrole e do domínio de si.

(2) Entre o período de Demócrito, Sócrates e Hipócrates e o de Galeno (131–201), o pensamento greco-romano veio a prezar grandemente a continência e mesmo a abstinência. Ademais, passaram a abordar com maior ênfase o poder virtualmente patogênico do sexo excessivo: Foucault fala de “uma certa patologização” do coito. Simultaneamente, os filósofos entoavam apelos e loas ao cuidado de si. O estoicismo o transformou numa arte, fato atestado pela definição de homem de Epicteto: “o ser a quem foi confiado o cuidado de si”) e por inúmeras expressões contidas nos tratados e nas cartas de Sêneca (“se formare”, “se facere”, “sibi applicare”, “suum fieri”, “in se recedere”, “secum morari”…). Sêneca também deu no “De Ira” a mais completa descrição de uma nova técnica altamente prezada: o exame de consciência. Um século mais tarde, Marco Aurélio discorrerá de modo também persuasivo sobre o autodomínio e o autoconhecimento. Talvez a originalidade de Foucault esteja nas observações que faz acerca de estoicos de menor renome, como Musônio Rufo, que eloquentemente defendia o casamento, a despeito do desdém que recebia dos epicuristas e cínicos. Assim como se revela cativante em seus comentários acerca das páginas de Plínio sobre a ausência de um marido, e seu amor ardente — tanto como ‘eros’, quanto ‘philia’ — pela jovem esposa que deixou em Roma. Até mesmo uma das primeiras poesias modernas do amor conjugal, nas Silvae de Estácio (45–96 d.c) recebe menções felizes.

(3) O texto de Foucault em O Cuidado de Si não menospreza a medida em que a mudança social, durante o período helenístico, e mais tarde, na Roma Imperial, a partir do período de Augusto, condicionou novas tendências na erótica antiga. Apropriando-se de trabalhos de classicistas como Claude Vatin e Paul Veyne, Foucault observa que a institucionalização do casamento por mútuo consentimento, na Antiguidade pós-clássica, consolidou a ideia de uma terna conjugalidade. A mesma evolução ocorreu em Roma: nos tempos republicanos, o casamento era antes de tudo uma questão de representação de papeis, sob um regime patriarcal, havendo nele pouco espaço para o sentimento. No Império, ao contrário, a “lei do coração” se tornou funcional. Em ambos os casos, no grego e no romano, surgiu uma ‘conjugalização’ do intercurso sexual. A conversão da nobreza numa ‘aristocracia administrativa’ também contribuiu para uma nova consciência do eu: o hiato entre o nascimento e o cargo acarretava uma nova busca de status como uma interrogação do homem sobre si mesmo.

(4) Não teria havido, então, na Antiguidade, qualquer descontinuidade espetacular na prática da ‘aphrodisia’: a erótica, por outro lado, era nitidamente dualista, sempre opondo o amor ‘vulgar’ ao amor ‘nobre’. Sob a égide do cristianismo ocorreu o oposto: o amor tornou-se unitário, embora esvaziado dos elementos hedonísticos, ao passo que se traçou uma fronteira clara para a busca dos prazeres.

(5) Contudo, ressalte-se que o apogeu da Roma imperial já havia assistido algo da ascensão de uma tendência conducente a uma erótica unitária. A exemplo do Diálogo sobre o Amor, de Plutarco, autor também dos Preceitos Conjugais, nos quais o ‘eros’ está firmemente engajado no ‘gamos’ (casamento), rejeitando assim o dualismo da erótica clássica. Em suma, pode-se dizer que a passagem para um ‘eros’ unificado se fez historicamente em conjunção com uma clara depreciação das práticas bissexuais da ‘aphrodisia’. Plutarco lançou um severo ataque contra o que considerava a hipocrisia daqueles que defendiam a erótica dualista da homossexualidade grega com base em elevados argumentos filosóficos, ocultando ao máximo sua base carnal, “como se Aquiles não tivesse chorado à lembrança das coxas de Pátroclo…”; Foi Plutarco que também introduziu o conceito de ‘charis’: o consetimento dado por uma mulher enamorada — e que não tinha como ser concedido por um jovem a um homem mais velho sem que o rapaz ficasse moralmente desqualificado. Desse modo, a filosofia pagã tardia, tal como o cristianismo, unificou o campo da teoria do amor ocidental, mas ao contrário dos pensadores cristãos, não cindiu a antiga unidade de amor e sexo, sentimento e prazer.

(6) Para concluir, é digno de nota que Foucault também recupera em sua investigação histórica o debate acerca da relação entre o estoicismo e o cristianismo que ocorrera no início da Modernidade. Para os humanistas da Renascença, por exemplo, Epicteto seria uma verdadeiro cristão avant la lettre. Já para os jansenistas contemporâneos, a exemplo de Arnauld, não se tratava de nada disso: os estoicos seriam virtuosos, mas de modo algum cristãos antes do cristianismo. Foucault parece estar ao lado de Arnauld neste debate teórico. Para ele, apesar de toda evolução ‘moralizante’ e da mudança geral no sentido de se defender o paradigma conjugal “dos elefantes” na vida sexual, o pensamento antigo pré-cristão diferia do cristianismo em um quesito crucial: o dispositivo confessional do cristianismo. Foucault discorreu sobre esta questão, acentuando a posição central da “verdade como dever” na cultura cristã que se foi instituindo a partir da Antiguidade tardia:

“Como todo mundo sabe, o Cristianismo é uma confissão. Isso significa que o Cristianismo pertence a um tipo muito especial de religião — aquelas que impõem obrigações de verdade sobre aqueles que as pratica. Obrigações semelhantes, no Cristianismo, são numerosas. Por exemplo, há o dever de sustentar como verdade uma série de proposições que constituem um dogma, a obrigação de manter certos livros como uma fonte permanente de verdade e de deveres para acatar as decisões de determinadas autoridades nas matérias da verdade. Porém, o Cristianismo requer outra forma de obrigação verdadeira. Todos na Religião Cristã têm o dever de explorar como eles são, o que está ocorrendo no seu interior, as faltas que podem ter cometido, as tentações às quais estão expostos. Além disso, todos são obrigados a contar essas coisas para outras pessoas e, por conseguinte, dar testemunho contra si mesmo.
Esses dois tipos de obrigação — aquelas que dizem respeito à crença, ao livro e ao dogma e aquelas que dizem respeito ao si, à alma e ao coração — estão conjuntamente ligadas. Um cristão precisa da luz da crença quando quer explorar a si próprio. Inversamente, seu acesso à verdade não pode ser concebido sem a purificação da alma. O budista também tem que ir rumo à luz e descobrir a verdade sobre si mesmo. Porém a relação entre essas duas obrigações é inteiramente diferente no Budismo e no Cristianismo. No Budismo, é o mesmo tipo de esclarecimento que conduz você para descobrir quem você é e qual é a verdade. Nestes esclarecimentos simultâneos sobre você e sobre a verdade, você descobre que o seu eu era somente uma ilusão. Eu gostaria de sublinhar que a descoberta cristã do si não revela o eu como uma ilusão. Dá lugar a uma tarefa que não pode ser coisa alguma, exceto indefinida. Esta tarefa tem dois objetivos. Primeiramente, há a tarefa de elucidar todas as ilusões, tentações, seduções que podem ocorrer na mente, e descobrir a realidade do que está passando dentro de nós. Num segundo momento, tem-se que chegar livre de algum vínculo com este si mesmo, não porque ele seja uma ilusão, mas porque ele é real demais. Além disso, descobrimos a verdade sobre nós, e temos que renunciar a nós; e, além disso, nós queremos renunciar a nós mesmos, além disso nós precisamos trazer à luz a nossa própria realidade. Isso é o que poderíamos chamar de espiral da formulação verdadeira e renúncia da realidade que estão no coração das técnicas cristãs do eu.”
(FOUCAULT, Michel & SENNETT, Richard “Sexuality and solitude”, in London Review of Books, 21 May — 3 June, 1981)

(7) Em contraste, a reflexão moral da Antiguidade clássica sobre os prazeres “não se orientou para uma codificação dos atos, nem para uma hermenêutica do sujeito, mas para uma estilização da atitude e uma estética da existência”. Isto é, tratava-se aí mais de ‘arte de viver’, a meio caminho das angústias pela salvação. Foucault irá sustentar as bases históricas de sua tese acerca desta mudança a partir de vários exemplos, como no contraste entre atitude pagã em relação à interpretação dos sonhos e a maneira como Santo Agostinho concebe o sexo. O texto de O Cuidado de Si analisa a Oneirocrítica de Artemidoro de Éfeso, do século II d.c: em seus quatro capítulos acerca dos sonhos com conotação sexual, considera o sexo como significante de prodígios futuros, em vez de tomar o sexual como significado supremos das imagens oníricas. Ademais, via os atos sexuais como predições de mudanças na posição social e econômica daquele que os sonhou. Como um típico pagão da Antiguidade, Artemidoro considerava a sexualidade, portanto, eminentemente ‘relacional’, profundamente vinculada à dinâmica social de modo direto. Por outro lado, Santo Agostinho irá minimizar o relacionamento com outras pessoas, para se concentrar no problema do eu diante do conflito Vontade versus Sexo. No célebre livro XIV de A Cidade de Deus, Agostinho contrapõe o sexo no Éden às relações sexuais após a Queda, para coroar sua concepção do sexo como epítome da perda do autocontrole. Em contraste, o sexo edênico seria a maravilha do autodomínio, onde o sexo é feito da mesma forma como cada um de nossos dedos controla seus gestos; o Sexo e a Vontade não estariam aí ainda dissociados. É nesse sentido que se pode afirmar que o homem confessional de Agostinho difere do eros platônico: a superação espiritual da libido deixa de consistir, como em Platão, em elevar os olhos aos céus e lembrar daquilo que a alma conhecera desde muito tempo, mas esquecera e, em vez disto, torna-se vigilância constante ao pecado, em olhar continuamente para baixo e para dentro, a fim de decifrar os movimentos perigosos do ‘eros’, da libido.

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Guilherme Almeida

Doutor em Filosofia (UFRJ); Mestre em Psicologia Social (UERJ); Professor do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro;