Lacan, leitor de Hegel (por Guilherme Almeida)

Guilherme Almeida
32 min readNov 17, 2017

--

É notória a disposição com que o discurso lacaniano se colocou permeável a debates transversais com o discurso filosófico. Por outro lado, julgo fundamental a advertência de Alain Badiou, no que tange a relação — repleta de tensões — entre o discurso lacaniano e o discurso filosófico:

Lacan insiste claramente que o essencial de seu pensamento provém de sua experiência clínica. Essa experiência é radicalmente exterior e estrangeira a filosofia(…) Lacan certamente atravessou, leu, deslocou e comentou grandes filósofos(…)Mas Lacan finalmente posicionou sua experiência sob a bandeira da antifilosofia. (…) Reunir-se [Lacan e a filosofia] sob o emblema sarcástico da antifilosofia não se seria um julgamento a respeito de nossa própria falência filosófica? Esta é a única questão realmente importante.[2]

Do mesmo modo, fazemos coro ao comentário que Richard Simanke, em Metapsicologia lacaniana — os anos de formação, faz a respeito do livro de Alain Juranville, Lacan e a Filosofia[3]:

Parece-nos, contudo, que o lugar da filosofia na obra de Lacan (isto é, o papel que desempenham suas reiteradas citações e referências à história da filosofia) só pode ser corretamente avaliado tendo em vista suas posições muito particulares diante da psicanálise, entendida como uma disciplina de vocação essencialmente clínica. Do modo como Juranville expõe suas idéias, parece que Lacan dedicou-se apenas a um insistente debate filosófico com Freud e com metade do panteão da filosofia ocidental. Trata-se, aqui, em suma, de tentar ler Lacan como um psicanalista — mais precisamente como um teórico da psicanálise — e não como filósofo, lingüista, ou o que quer que seja[4].

De nossa parte, é preciso dizer que ao discorrermos sobre as referências a Hegel no discurso lacaniano — mero recurso didático ou diletante, dirão alguns — não o fazemos para simplesmente revelar que nenhum recurso didático é inocente. Trata-se de procurar operar no ponto de cruzamento das elaborações conceituais e suas respectivas apropriações, interrogando tanto o que estas abririam de possibilidades àquelas, assim como as especificidades que as tornam irredutíveis umas às outras.

Abordaremos inicialmente os efeitos em torno da ida de Lacan ao seminário de Kojève, para em seguida tratar da ida de Jean Hyppolite ao Seminário [5] de Lacan.

I — Do seminário ao Seminário: Kojève e Lacan

Em 1933, quando chega ao seminário de Kojève, levado por George Bataille, Lacan já não era um psiquiatra ortodoxo, visto que se encontrava em situação peculiar no cenário psiquiátrico: no ano anterior havia publicado uma tese a respeito das relações entre a paranóia e a personalidade[6], a qual obteve uma acolhida interessada de surrealistas e marxistas. Logo após sua publicação, Paul Nizan, em uma edição de L´humanité — jornal do órgão central do PCF — dedicara-se a resenhá-la[7]. Lacan também publicara dois artigos sobre o crime das irmãs Papin[8] na revista surrealista Le Minotaure, acentuando ainda mais sua condição, algo peculiar, de chefe de uma clínica psiquiátrica com (boa) reputação dentre a vanguarda intelectual francesa.

Evidentemente, essas notas biográficas — bem conhecidas e bastante exploradas pela literatura lacaniana — não dão conta de esclarecer, ao nível do discurso e dos conceitos, o que exatamente na leitura kojèveana da Fenomenologia do Espírito promoveu um “curto-circuito” no percurso de Lacan, tendo em vista que o que comenta Elizabeth Roudinesco, “sem essa iniciação a obra de Lacan teria permanecido para sempre prisioneira do saber psiquiátrico ou de uma apreensão acadêmica dos conceitos freudianos”[9]. Tratemos, portanto, de avançar, descrevendo não só como os conceitos do Hegel-de-Kojève puderam intervir junto aos problemas instaurados por Lacan, mas também de mostrar a região onde a comunicação entre ambos é impossível, onde suas bordas não coincidem…

O desejo de Lacan e o desejo de Kojève

Dos encontros de Lacan com Kojève em 1936, surge um projeto, logo abortado, de escrever um ensaio de confrontação interpretativa entre Hegel e Freud [10]. Já das páginas que Kojève rascunhou em 1936, emergem alguns enunciados (“o eu [je] como sujeito do desejo, o desejo como revelação da verdade do ser, o eu [moi] como lugar da ilusão e fonte de erro”[11]), que estarão visivelmente presentes nos textos redigidos por Lacan entre 1936 e 1949.

“Independente do que pensava Hegel, a Fenomenologia do Espírito é uma antropologia filosófica” — anunciava Kojève, conforme já citamos. Efetivamente, é a pretexto de uma antropologia, ou ainda, como sugere Simanke[12], de uma ‘teoria da antropogênese’, que o Hegel-de-Kojève irá inicialmente participar das teorizações lacanianas. Todavia, o problema da constituição do sujeito será aí abordado não sob o ângulo de uma instância determinante, tal como ‘a sociedade’ ou ‘a coletividade’, mas de uma instância a-ser-determinada, a saber: o sujeito como pura negatividade, forjado necessariamente numa situação social — “um vazio ávido de conteúdo”[13], para usar uma expressão de Kojève.

Porém, não se pode afirmar que a simples referência a uma mediação na constituição do sujeito fosse a contribuição específica de Kojève às elaborações lacanianas. O específico da ontologia negativa de Kojève será contribuir para se pensar a constituição do sujeito mediada por uma alteridade interna. Isto significará explorar a idéia de que o sujeito não é anterior ao mundo das imagens que a ele se apresentam — ele se constituiria, antes de tudo, nelas e por causa delas. Conforme sintetiza, a respeito, Bertrand Olgivie:

É Kojève leitor de Hegel quem fornece a Lacan o meio de formular a idéia de que a estrutura reacional do sujeito não está ligada a uma situação que a permitiu de maneira ocasional, mas de maneira essencial, na medida em que ela já a contém em si mesma; o sujeito não é anterior a esse mundo das formas que o fascinam: ele se constitui, antes de tudo, nelas e graças a elas[14].

Trata-se de formular acerca da constituição do sujeito em sua relação imaginária com os outros, tomando a relação como, simultaneamente, interna à própria atividade do sujeito e ponto-chave de sua dependência.

As “afinidades eletivas”[15] entre Kojève e Lacan podem se fazer sentir já no ponto de partida dos esforços conceituais de ambos. Conforme vimos, Kojève estabelecia que somente numa situação social, a consciência-de-si pode vir a surgir. Por sua vez, Lacan afirmará em 1948, no artigo A agressividade em psicanálise, ainda que obscurecendo a mediação de Kojève, que Hegel haveria fornecido “(…) a teoria definitiva da função própria da agressividade na ontologia humana (…)”[16]. A formulação kojèveana da negatividade no encontro com o outro, da “luta de puro prestígio”[17] que conduz, na dialética do senhor e do escravo, à negação um dos sujeitos envolvidos, ressoa próxima ao papel psíquico que Lacan atribui à agressividade: uma conseqüência compulsória da identificação. Neste mesmo sentido, em Formulações sobre a causalidade psíquica, artigo redigido em 1946, Lacan afirma ter encontrado, novamente em Hegel, uma fórmula geral da loucura, a qual seria definida como uma estase do ser na dialética do desenvolvimento humano, na medida em que este seria composto por sucessões de identificações ideais.[18]

Decerto, o modo como Lacan conceitua neste momento a formação do eu — identificação agressiva e alienante com o outro — mostra-se profundamente marcado pela Fenomenologia do Espírito tal como lida por Kojéve e o próprio Lacan ratifica esta vinculação na Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinug” de Freud:

(…) a dialética que sustenta nossa experiência, situando-se no nível mais envolvente da eficácia do sujeito, obriga-nos a compreender o eu, de ponta a ponta, no movimento de alienação progressiva em que se constitui a consciência de si na fenomenologia de Hegel.[19]

Assim, o que Lacan encontra em Kojève, num primeiro momento, é um aliado ao projeto de conferir ao sujeito uma origem na realidade social para além da naturalidade manifesta no comportamento animal. Em termos kojèveanos, isto poderia ser traduzido em: buscar a origem da consciência-de-si (instância da subjetividade) para além do sentimento-de-si (instância da objetividade).

Que a história seja a superação da natureza por meio da ação de um desejo que é pura negatividade, tal como se desenrolava o fio condutor da narrativa dramática de Kojève, isto decerto ajuda a esclarecer a relação do sujeito com a biologia, tal como a entenderá Lacan neste momento. Especialmente sobre a forma como essa relação será categorizada sob um discurso da falta enquanto princípio do desejo humano. A distância existente entre natureza e história no Hegel-de-Kojève possui uma medida próxima àquela que Lacan pensava haver entre a biologia e o processo de humanização: em ambos os casos, o desejo é o pivô de uma superação, na qual o dado natural ocupa o lugar de alvo de uma ação negadora. Um bom exemplo disto está no artigo Os complexos familiares na formação do indivíduo[20], escrito em 1938 para compor o verbete Família na Enciclopédia Larousse, onde Lacan defende que é a especificidade do desejo da criança em não poder se satisfazer sozinha — caso pudesse, não ultrapassaria o nível da co-naturalidade animal, ou na terminologia kojèveana, um “eu-coisista” — que suscita toda a dialética do desenvolvimento psíquico.

Não chegaria ser nenhum disparate afirmar que as formulações lacanianas devem tanto a Kojève como a Freud a concessão de um lugar central ao desejo em suas tramas conceituais. Efetivamente, era Kojève quem afirmava (mas bem que poderia ser Lacan entre fins da década de 30 e meados de 50…):

É no e por, ou melhor ainda, enquanto ‘seu’ Desejo que o homem se constitui e se revela — a si mesmo e aos outros — como um Eu, como o Eu essencialmente diferente e radicalmente oposto ao não-Eu. O Eu (humano) é o Eu de um — ou do — Desejo.[21]

Vale apontar ainda que, dentre as aproximações possíveis entre Kojève e Lacan, no que se refere agora aos efeitos de comentário, há quem se refira a um ‘estilo’ de ensino compartilhado por ambos. Em comum, estaria um ensino pautado numa transmissão oral que procurava retomar (ou reinventar) o sentido de textos considerados obsoletos. Como comenta a respeito Simanke:

(…) [Lacan] teria tentado fazer com Freud, dos anos 50 em diante, mais ou menos o que Kojève fazia com Hegel nos anos 30, isto é, traduzir uma doutrina julgada ultrapassada, conservadora ou, pelo mesmo, restrita a certos círculos institucionais, em termos que lhe permitissem alcançar a imaginação teórica de sua geração, trazendo-a assim para o primeiro plano do debate intelectual que lhe era contemporâneo[22].

Todavia, para além de todas as aproximações, efetivas ou especulativas, existe talvez um ponto na intercessão-interseção do Hegel-de-Kojève com Lacan que torna decisiva a bifurcação entre ambos. Ele diz respeito à centralidade do conceito de ação no comentário efetuado por Kojève sobre Hegel, e a conseqüente ênfase em uma certa autonomia e liberdade do sujeito, destoando das ambições, decisivas no itinerário lacaniano, de formalizar as determinações do sujeito.

Por um lado o conceito de ação é um aliado, na medida em quem combate qualquer ranço da subjetividade tomada como ‘desenrolar de uma vida interior’. Entretanto — e talvez este seja um conflito importante para compreender a dimensão da futura guinada “estruturalista” no discurso lacaniano — , ao pretender formalizar as determinações da subjetividade a ênfase na autonomia e ação do sujeito será ser amenizada. Pode-se dizer que os objetivos das elaborações lacanianas e os problemas que elas interpelavam exigiram, exigiam o estabelecimento de uma determinação não-reducionista, porém concreta, para o sujeito e, simultaneamente, a preservação de um espaço para sua atividade.[23]

Continuando a traçar os limites da interseção entre ambos campos discursivos e conceituais, há que se considerar que enquanto o sujeito lacaniano é tomado de uma falta essencial, o kojèveano, está próximo a um sujeito da ação histórica, que se ‘libertaria’ pela negação do dado natural, afirmando a história. Lembremos o lugar privilegiado que a ação humana possui na ontologia de Kojève: é ela que, segundo ele, possuiria a capacidade de introduzir o novo no mundo, determinando o curso dos acontecimentos. Talvez por isso Kojève, com seu ativismo de conseqüências ontologizantes, seja muitas vezes citado, novamente no que tange aos efeitos de comentário, como um dos “precursores” do existencialismo francês.

Se a dialética do senhor e do escravo aponta para a emancipação final do escravo mediante o trabalho, para Lacan, o ideal de ‘libertação’, caro ao marxismo “hegelianizado” (ou hegelianismo “marxianizado”, como se prefira) de Kojève, manteve-se distante de interceder em suas formulações. A área de interseção onde as bordas dos conceitos lacanianos e kojèveanos não se comunicam decerto passa pela ênfase de Lacan — radicalizada nos anos de prestígio do estruturalismo — em uma ordem de determinação investida de ubiqüidade, seja ela imaginária ou simbólica, que prescinde do “drama humano”. Sem esta ressalva talvez estivéssemos a discorrer sobre Sartre e não acerca de Lacan…

O que gostaríamos de trazer à tona é um dos efeitos importantes da intercessão de Kojève a Lacan: as questões colocadas pela filosofia concreta, apesar de haverem contribuído decisivamente para a construção da “teoria do imaginário” — e de seu momento mais representativo, o estágio do espelho — revelarão ao mesmo tempo os impasses próprios à mesma. No nível dos conceitos, uma das razões para tais impasses é o fato da ontologia negativa de Kojève atribuir à natureza a característica de identidade e, à história, a diferença. Recordemos que Kojève irá propugnar que agir na história é trabalhar para não ser tal como se é, enquanto que o dado da natureza é enquanto idêntico a si mesmo. O sujeito da história é enquanto ele age, — enquanto ele não cessa de produzir a diferença. O imaginário estaria por demais ligado ao plano da identidade para que pudesse dar conta da diferença no processo de constituição da subjetividade, mesmo que tomado em uma dimensão dialético-negativa. Conforme resume Simanke a este respeito: “(…) a ação, a diferença, a ‘negatividade-negadora’ dificilmente poderiam harmonizar-se com uma teoria centrada na identidade e na passividade do reflexo especular”[24].

Esse é um dos pontos que, de certa forma, começa a exigir a ultrapassagem da “teoria do imaginário” e que será retomado posteriormente em outra intercessão lacaniana: Lévi-Strauss. Seus efeitos são mais evidentes no discurso lacaniano a partir de 1953, a exemplo das conferências O Mito Individual do Neurótico[25] e Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise[26]. A leitura da antropologia estrutural de Lévi-Strauss, ao mesmo tempo em que traz subsídios para a construção de uma teoria do simbólico, é incompatível com o ativismo reclamado por Kojève para o sujeito. Ou melhor dizendo, a estrutura declarada como instância última de determinação da subjetividade não será uma premissa de fácil convivência com a necessária consideração de um espaço para a atividade do sujeito. Além disso, como assinala Simanke, Kojève centraliza o processo de constituição da subjetividade na perspectiva do tempo (o “fim-da-história”) e não na do espaço, como requereu a teoria do imaginário[27].

Assim, a construção da teoria lacaniana do simbólico possuirá dois pilares que irão de encontro um ao outro: a intercessão de Kojève, ao enfatizar a atividade do sujeito, fornecerá as condições para formular a questão do lugar do sentido no discurso lacaniano; e a de Lévi-Strauss, que com sua teorização a respeito da dependência do sujeito com relação à estrutura conferirá elementos para o preenchimento dos critérios de cientificidade — projeto que de certa forma acompanhava o discurso lacaniano desde a tese de 32, tal como descrevemos.

Encerrando nosso passeio do seminário ao Seminário, talvez seja possível concluir apontando que um dos significados mais decisivos do Hegel-de-Kojève na construção da “teoria do imaginário” lacaniana foi o fornecimento de uma condição para abordar a ‘gênese social’ do sujeito em um encontro ‘agressivo’ com o outro, valendo-se da negação do dado da natureza e, sobretudo, mediante uma ontologia capaz de sustentar um discurso que, para ser concreto, necessitava contudo se afastar dos reducionismos — fosse de teor naturalista ou psicologista. Ao ser transposta para a especificidade da clínica e da experiência psicanalítica, esta mirada ‘dialética’ passará a ser entendida como um conjunto de “aproximações sucessivas da verdade do desejo que é a de ser o desejo de um outro, o desejo por reconhecimento”[28]. Quanto a este ponto, cuidemos de melhor esclarecê-lo evocando outra das visitas “hegeliana” ao Seminário: Jean Hyppolite.

II — Lógica , Existência e Reconhecimento: Hyppolite visita Lacan.

[Eu] partia da convicção de que a filosofia contemporânea era inseparável da psicanálise. Jean Hyppolite[29]

Em fevereiro de 1954, quatro meses após o início das atividades do Seminário sobre “os escritos técnicos de Freud”[30], Lacan convida Jean Hyppolite para saber o que um hegeliano teria a dizer sobre Freud. Pede-lhe que comente o texto de Freud, “Die Verneinung”:

Pedi-lhe que comentasse de Freud um texto muito curto, mas que, por se situar em 1925, isto é, bem mais adiante no desenvolvimento do pensamento de Freud, já que é posterior aos grandes textos sobre a nova tópica, leva-nos ao cerne da nova questão levantada por nosso exame da resistência. Refiro-me ao texto sobre a denegação.[31]

Ao mesmo tempo em que Hyppolite, ao ler a edição alemã do texto de Freud, concorda com Lacan quanto a traduzir “Die Verneinung” por “A Denegação”[32], por outro lado ele admite esta não ser a única interpretação possível do termo, sendo necessário, assim, adentrar no discurso freudiano para explorar as conseqüências e limites de tal opção:

“Vou dizer o que não sou; atenção, é precisamente o que sou”. É assim que Freud se introduz na função da denegação e, para isso, emprega uma palavra com a qual não pude senão me sentir familiarizado,a palavra Aufhebung que, como sabem, sofreu fortunas diversas. É a palavra da dialética de Hegel, que simultaneamente quer dizer negar, suprimir e conservar e, no fundo, suspender. Freud, aqui, nos diz: “a denegação é uma Aufhebung do recalcamento, mas nem por isso uma aceitação do recalcado”(…) Eis o resumo: não se encontra na análise nenhum ‘não’ vindo do inconsciente mas o reconhecimento do inconsciente, pelo lado do eu,mostra que o eu é sempre desconhecimento; mesmo no conhecimento, sempre encontramos do lado do eu ,numa fórmula negativa, a marca da possibilidade de deter o inconsciente, ao mesmo tempo recusando-o.[33]

Segundo o comentário de Hyppolite, o texto freudiano sobre a Verneinung introduz uma outra forma de não: o que supõe uma afirmação. Neste caso, a negativa seria uma forma de tomar conhecimento do recalcado, como que uma suspensão (Aufhebung) do recalque, mas sem a aceitação do que foi recalcado. Haveria, portanto, o reconhecimento do inconsciente pelo eu, mas esse reconhecimento se expressaria em forma negativa. Eis a dimensão de reconhecimento: no movimento de suspensão do recalque, o eu não admite o conteúdo do inconsciente, mas o reconhece, justamente, nesse ato de não-admissão.

Hyppolite efetua uma distinção entre a ‘negação lógica’ e a ‘atitude de negação’, a qual seria “a Verneinung enquanto atitude fundamental de simbolicidade explicitada”[34]. A negativa enquanto Verneinung e a negação da lógica formal seriam, segundo Hyppolite, duas diferentes formas de negação. Enquanto a negação lógica é a negação de uma afirmação, a Verneinung supõe uma acolhida primordial . A denegação não é o “não” da lógica formal, mas o símbolo desse “não” por meio da enunciação, sendo, pois, o desmentido que se acolheu: desmentindo uma enunciação, mostra-se que ela foi acolhida. Enquanto que a negação lógica se relaciona ao princípio da contradição, isto é, não é possível que algo seja e não seja ao mesmo tempo e sob as mesmas circunstâncias, a negação a qual se referia Freud estaria mais próxima, segundo Hyppolite, à lógica dialética.

Da interpretação de Hyppolite, Lacan toma não só o fio condutor que lhe permite mostrar o sentido e a função do recalque, como também afirmará que,

em outras palavras, a dialética que sustenta nossa experiência, situando-se no nível mais envolvente da eficácia do sujeito, obriga-nos a compreender o eu, de ponta a ponta, no movimento de alienação progressiva em que se constitui a consciência de si na fenomenologia de Hegel.[35]

Chegando a este ponto, deixemos Lacan por enquanto e nos encontremos brevemente com a trajetória conceitual de Jean Hyppolite.

Lembremos que nos textos de Hyppolite redigidos no imediato pós-guerra tratava-se de ler a Fenomenologia do Espírito em “chave existencial”, sob o emblema da infelicidade da consciência separada da ‘vida’, enquanto solo natural perdido para sempre[36]. Em uma leitura “existencializante”, Hyppolite retomava a ênfase dada pelo comentário de Kojève ao desejo como negatividade–negadora, instância que definiria a especificidade do ‘humano’, mas com fins de destacar uma incompletude: perdida de si-mesma, “alienada”, a consciência encontraria no reconhecimento de outra consciência a condição de sua reconciliação com o “seio da vida”. Diferentemente do comentário de Kojève, Hyppolite enfatizava não a negação do objeto pela ação negadora do desejo, mas a negação da própria consciência–de– si [37]. Conforme sintetiza a respeito Arantes:

Ia então nesse rumo (que não era bem o de Kojève, cujo ativismo belicoso não tinha parte com esse gênero de meditação sobre o irreparável e a finitude) o comentário do dito hegeliano acerca da vida do espírito enquanto doença do animal: ser-para-a-morte definidor da “existência” — como diria Merleau-Ponty, basta pensar para perder a inocência da vida unida consigo mesma. (…) Ainda naqueles textos de 1946/1947 (…) vai se desenrolar assim o drama de uma busca: no fundo dela mesma, o que a consciência desejante procura não é o consumo óbvio do objeto, mas a si mesma.(…) Como Hyppolite comenta um tanto livremente, o Outro, tão aguardado naqueles tempos de embate entre l´être-pour-soi e l`être-pour-autrui, surgirá um pouco ex-abrupto como uma instância que “me afeta de modo insuportável”.[38]

Alguns anos depois, em 1953, Jean Hyppolite publicava Lógica e Existência[39]. O livro não só marca uma ruptura importante no percurso filosófico de Hyppolite como também em relação ao rumo dos debates no pós-guerra francês, em especial no que tange à questão-Hegel. Em uma resenha publicada em 1954[40], Deleuze — que jamais escondeu sua gratidão pelo ensino de Hyppolite, a quem dedicou Empirismo e Subjetividade[41] — assim delineia o programa de Lógica e Existência:

Hyppolite ergue-se (…) contra toda interpretação antropológica ou humanista de Hegel. O saber absoluto não é uma reflexão do homem, mas uma reflexão do Absoluto no homem[42].

No âmbito da filosofia francesa no pós-guerra, Lógica e Existência é um importante acontecimento. Não apenas pela calorosa acolhida do livro dentre por aqueles que, a exemplo de Deleuze e Foucault[43], seriam reconhecidos posteriormente como ícones da crítica à dialética, como também por operar uma ruptura decisiva com a leitura ‘existencial’ de Hegel, que havia se popularizado desde o imediato pós-guerra — e com a qual o próprio Hyppolite contribuíra. Tomando os efeitos de comentário como índice, neles Lógica e Existência costuma ser apontado como o ponto final de uma

leitura humanista de Hegel popularizada por Kojève na França antes da Segunda Guerra Mundial e o início do forte anti-hegelianismo da filosofia francesa dos anos 60. Se a expressão “filosofia da diferença” define o anti-hegelianismo francês, então devemos dizer que não haveria nenhuma filosofia da diferença sem Lógica e Existência.[44]

Em que se pese algum exagero na afirmativa acima[45], isto não elide a relevância da démarche conceitual de Lógica e Existência. A exemplo da resenha publicada por Deleuze em 1954, onde é formulada a hipótese de uma “ontologia da pura diferença” — o leitor de Deleuze decerto reconhecerá a retomada da questão em Diferença e Repetição[46], publicado alguns anos mais tarde.

De acordo com este tão rico livro de Hyppolite, poder-se-ia perguntar o seguinte: não se poderia fazer uma ontologia da diferença que não tivesse de ir até a contradição, justamente porque a contradição seria menos e não mais do que a diferença? A contradição não é somente o aspecto fenomênico e antropológico da diferença?[47]

Por sua vez Foucault dirá, em 1969, no discurso de homenagem a Hyppolite, que “todos os problemas que são os nossos, foi ele [Hyppolite] quem os estabeleceu; é ele quem os formula neste texto, Lógica e Existência, que é um dos grandes livros de nosso tempo”[48].

“A imanência está completa”[49]. A proposição que encerra o capítulo final de Lógica e Existência, pode ser tomada também como um mote que resume o anti-dualismo de Hyppolite, ao tentar responder a questão posta ao início do livro: “Como se opera a passagem da Fenomenologia ao Saber Absoluto?”[50]. Segundo Hyppolite, trata-se de tentar responder a questão assinalando que a lógica é imanente ao sentido e que o lugar do Absoluto é a mediação[51]. Isto significa, para Hyppolite, que a dicotomia essência-aparência (ou existência) só teria fundamento num humanismo que, ao enfatizar a ‘Fenomenologia’ de Hegel em detrimento da ‘Lógica’, insistiria em por Pensamento e Ser em separados, “negligenciando a relação viva que formula cada um de seus termos (…); A gênese do pensamento é necessariamente circular”[52]. Em outras palavras, a lógica precede o homem, é preciso fazer reconhecer isto, antes de qualquer coisa. Embora isto não elida o fato de que ela se efetive no movimento da consciência-de-si, logo, através do homem. Tal como comenta Deleuze a respeito de Lógica e Existência:

A filosofia deve ser ontologia, não pode ser outra coisa; mas não há ontologia da essência, só há ontologia do sentido. Aí está, parece, o tema desse livro essencial, cujo próprio estilo é de uma grande potência. Que a filosofia seja uma ontologia significará, primeiramente, que ela não é antropologia.(…) não se tem de um lado, o que eu digo, e , de outro, o sentido daquilo que digo — sendo a persecução de um pelo outro a dialética da Fenomenologia [do Espírito][53].

Ainda que fuja do nosso escopo adentrar nas filigranas conceituais de Lógica e Existência, apontamo-las brevemente, de modo a ressaltar que a torção ‘anti-humanista’ em Hegel, promovida por Jean Hyppolite, foi uma das condições de existência à interlocução entre o discurso hegeliano francês e o ‘retorno a Freud’ promovido por Lacan. Tem-se aí um elemento importante para se entender como o discurso lacaniano, mesmo a partir da década de 50, quando se aproximará do programa estruturalista, continuará debatendo sua teoria do sujeito em um vocabulário hegeliano, como se vê em “Subversão do desejo e dialética do desejo no inconsciente freudiano”[54] — texto tornado célebre e apresentado por Lacan num colóquio organizado por Jean Whal em Royaumont, em setembro de 1960. A questão da intercessão/ interseção hegeliana no discurso lacaniano se apresenta aí de modo bem explícito, sobretudo no que diz respeito a uma espécie de “acerto de contas” com a leitura humanista de Hegel efetuada por Kojève, a qual, conforme já demonstramos, foi importantíssima na constituição do corpus conceitual lacaniano. Convém destacart que até teorizar o inconsciente em termos de estrutura (seja por uma aproximação à antropologia de Lévi-Strauss, em 1953[55], seja por referência à lingüística de Jakobson, em 1957[56]), o discurso lacaniano se apropriava do discurso filosófico sobretudo para valorizar o “retorno a Freud”. Será somente a partir do momento de sua guinada ‘estrutural’, que Lacan sugerirá de modo mais efetivo um impasse ao qual a filosofia estaria condenada, em função da existência do inconsciente. Conforme comenta, em tom algo anedótico, Roudinesco:

Sua Majestade começava portanto a colocar-se como um ‘antifilósofo’ que lia filosoficamente o discurso freudiano ao preço de uma condenação à morte da filosofia.[57]

Ainda a este respeito, talvez seja pertinente recordar que Freud em “As resistências à psicanálise” — texto de 1925, escrito originalmente em francês, destinado a La Revue Juive [58] — também atribuía às filosofias da consciência, uma das principais modalidades de ‘resistência’ à psicanálise. Não por acaso, ao abordar as relações possíveis entre a Fenomenologia de Hegel e a psicanálise, Hyppolite irá privilegiar “o problema do inconsciente” e a função do desconhecimento da consciência:

A consciência vê e não vê. Conhecendo, a consciência desconhece; mas não nos esqueçamos que desconhecer não é inteiramente não conhecer; desconhecer é conhecer para poder reconhecer e para poder dizer um dia: eu sempre soube; quem se desconhece, de certo modo se conhece.De tal maneira que se a consciência natural é fundamentalmente inconsciência de si, ela também é um modo de, desconhecendo-se, conseguir um dia se reconhecer. Talvez esteja aí uma das chaves do problema do inconsciente: ele não é uma coisa situada atrás de outra coisa, mas (…) um certo modo inevitável, para a consciência natural, de ser ela mesma.[59]

É evidente que Lacan não estava visando propriamente uma análise crítica da Fenomenologia do Espírito. Em Subversão do desejo e dialética do desejo no inconsciente freudiano, Lacan anuncia que as referências ao texto de Hegel serviriam apenas como “mediação fácil para situar o sujeito numa relação com o saber”[60] ou como “referência totalmente didática”[61] para saber em que ponto se encontra a questão do sujeito e a subversão operada pela psicanálise, no que tange à relação entre verdade e saber[62].

Lacan assinala algumas diferenças que separariam o discurso freudiano do discurso hegeliano, a saber: a ‘consciência infeliz’ como mera suspensão do saber, no autor da Fenomenologia, mas como sintoma de um conflito cultural intransponível e irreparável no autor de O mal-estar na civilização; assim como a ‘dialética do reconhecimento’, situada por Hegel no registro do imaginário e pela psicanálise no registro do simbólico. De certa forma, todas as críticas de Lacan se articulam em torno de uma diferença fundamental, condensada na noção de “subversão” do sujeito operada pela psicanálise. Para demonstrá-la, Lacan parte da compreensão do inconsciente entendido como estrutura de linguagem, retirando daí as implicações que o diferenciam da filosofia de Hegel.

Enquanto em Hegel, segundo Lacan, o sujeito seria aquele “que sustenta sobre a história o discurso do saber absoluto”[63] , tratando-se portanto de um sujeito que seria uma substância que ruma a uma perfeita e plena coincidência entre saber e verdade, para a psicanálise o sujeito enquanto tal seria uma instância dessubstancializada, de natureza lingüística. Haveria uma distância intransponível entre Hegel e Freud. Para a psicanálise, não seria possível efetuar a passagem da filosofia para a ‘Sofia’, de um amor pelo saber (verdade parcial) para o saber (verdade total), tal como descreve a sucessão das figuras da consciência na Fenomenologia do Espírito.

Contudo, na interpretação de Lacan, haveria ainda na teoria e na prática psicanalítica um lugar de aproximação a algum Hegel. Aquele que no prefácio à Fenomenologia do Espírito escrevera: “(…) tudo decorre de entender e exprimir o verdadeiro não como substância, mas também, precisamente, como sujeito[64]. Restaria, portanto e acima de tudo, o trabalho de articular a subjetividade com a verdade — tarefa que sem dúvida compartilharam, sem decerto menosprezar a potência criadora dos mal-entendidos, Jean Hyppolite e Lacan.

***

Ao dar visibilidade a algumas conexões importantes que intervieram no percurso de constituição do corpus conceitual lacaniano, almejamos ir além da simples tarefa de ‘contextualização’ ou de ‘resgate do horizonte cultural’ do mesmo. Ainda que seja possível assim tomar as referências às mediações hegelianas de Kojève e Hyppolite junto aos problemas teórico-clínicos que ajudaram a constituir a trajetória conceitual lacaniana, nosso intuito não foi de fazer uma história das influências que atuaram sobre o jovem psiquiatra Lacan. Diferentemente, esperamos ter realçado outra coisa: os problemas e dilemas teóricos que o discurso lacaniano, em seus momentos constitutivos, necessitou e ousou se confrontar. Pender a balança para este lado, de certa forma, prepara o terreno para a menção a outro ponto que gostaríamos de sobrepor a este, à guisa de conclusão temporária do caso.

Concluindo: o caso Lacan e suas relações com a paranóia pós-lacaniana

É bastante conhecido o fato de que tanto os que admiram quanto os antipatizam, não importando aqui o motivo em nenhuma das duas situações, com o estilo de escritura consagrado pelo ensino de Lacan, consideram-no muitas das vezes incompreensível e inadvertidamente obscuro. Há até mesmo quem partilhe da opinião, seja troçando ou não, de que os lacanianos falariam uma outra língua, o “lacanês”. O próprio Lacan admitira algo no sentido de uma obscuridade necessariamente interna à sua elaboração conceitual: “Há nas dificuldades do meu estilo, alguma coisa que responde ao objeto mesmo do qual ele trata”[65].

Decerto, o caso do discurso lacaniano não é único neste sentido. De Kant a Husserl, passando por Heidegger, dentre tantos outros menos célebres e confinados à infâmia pela posteridade, muitos foram os que parecem ter sentido a necessidade de forjar um estilo de escritura que fosse ao encontro da produção de novos objetos e problemas — as palavras parecem faltar diante de rupturas com a tradição da qual se provém, seja ela qual for. No caso específico de Lacan, é ainda pertinente assinalar que a suposta obscuridade fundamenta-se, a bem da verdade, conforme destaca Soulez[66], numa certa concepção sobre a natureza do saber sobre o inconsciente e suas condições de transmissão. Tratar-se-ia, sob este ponto de vista, de não se perder de vista que esta transmissão, tanto em sua dimensão clínica como quanto à pesquisa teórica, deva se dar sempre sob o signo da transferência[67], devendo portanto evitar ser confundida com uma pedagogia meramente formalizadora que acabaria por eliminar as especificidades do saber psicanalítico.

Concordamos com o argumento. Contudo, não acreditamos que ele possa nos isentar da pergunta acerca do que a aderência irrestrita a ele pode nos custar. Diga-se de passagem, o próprio Lacan não ignorou este aspecto. Em Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956[68], Lacan afirma que um ensino de psicanálise que fosse baseado estritamente nos “preceitos da prática” em detrimento dos “conceitos”[69], teria como eventual efeito uma alarmante ausência de novas questões, inversamente proporcional na quantidade de assentimentos, dentro dos quais “o sim tem com o não uma compatibilidade (…); e no interior dos grupos os indivíduos, que não se entendem entre si sobre o sentido de um só dos termos (…) aplicam religiosamente tanto à comunicação como a direção de sua experiência”[70]. Evidentemente, Lacan não estava propugnando uma intelectualização da transmissão do saber psicanalítico e sim interrogando “a curiosa postura de extraterritorialidade científica e o tom magisterial com que os analistas a sustentam quando têm de responder aos interesses que sua disciplina desperta nos campos circunvizinhos”.[71]

Não se trata de fazer crítica pessoal a este ou aquele comentador lacaniano, aferindo-os com uma cartilha de virtudes teologais, com as quais estariam em dívida. Para usar uma expressão de Beividas, “não se trata da fragilidade discursiva idioletal”[72]. Trata-se de explorar as conseqüências de uma modalidade de discurso. Neste sentido, antes de qualquer coisa, há de se ter em conta que boa parte das críticas que se tece ao estilo de escritura lacaniana dizem respeito sobretudo “ao mero elogio hiperbólico do estilo como epifania espontânea da subjetividade, tal como ele vem sendo estimado até hoje na literatura de seus discípulos, regra geral”[73].

O modo como parte da literatura pós-lacaniana (i.e, seus discípulos e comentadores) se apropriou, ou talvez melhor dizendo, mimetizou o estilo de Lacan, não raro resvala para a mera legitimação, no nível dos conceitos, de um lugar confortável de ‘extraterritorialidade absoluta’ — para usar uma expressão do próprio Lacan em Situação da psicanálise. O que, para além da produção eventual de discursos vazios e inofensivos, por certo é capaz também de se prestar ao exercício do controle, escansão e interdição dos discursos estrangeiros à psicanálise no âmbito das instituições onde ela se faz presente — até aí, diga-se de passagem, como qualquer outra hegemonia identificado como discurso totalizante, não sendo uma característica exclusiva das hegemonias psicanalíticas. Que o discurso lacaniano aí faça as coisas ‘funcionarem’, isto não destitui de forma alguma o lugar para se perguntar o que ou como funciona.

Em suma, não se trata aqui de pôr a desinteressante questão de ser contra ou a favor, mas antes de não eclipsar as condições que certamente contornam os limites da circulação dos discursos, sejam eles favoráveis ou contrários a esta ou aquela orientação.

Prossigamos na questão trazendo um exemplo do já citado artigo de Waldir Beividas:

Encontro num texto psicanalítico a seguinte formulação: “o problema do Outro tem a ver com o outro e essa articulação (?!) tem fundamental e primordialmente a ver com o problema da identificação” (parênteses meus). Deixemos de lado o já problemático uso da expressão «problema». O autor vai avançar numa pequena variação da relação: “o problema do outro está estritamente vinculado com o problema da identificação”. E, mais adiante, estabelece sua «síntese»: “o problema do Outro tem a ver com a identificação e esta tem a ver com o Édipo. A conclusão evidente nesse silogismo (?!) é, portanto, a de que o Édipo tem a ver com o Outro”[74]

Este tipo de junção comum “ter a ver”, “estar vinculado” e “estar em relação” em nada dão a conhecer o tipo de relação e o modo de articulação entre os conceitos. Evidente que tudo tem a ver com tudo no corpus conceitual lacaniano, entretanto, nem tudo tem a ver com tudo de igual maneira. Trata-se certamente de se perguntar até que ponto não haveria no estilo discursivo de certa literatura pós-lacaniana, como sugere Beividas, um campo conceitual riquíssimo apropriado em uma sintaxe frágil, isto é, com suas modalidades de relação apagadas. Esta fragilidade de sintaxe, inerente às próprias condições de existência das formulações da literatura pós-lacaniana, facilita o regime discursivo pautado na autoridade do dixit: pouco importaria, ou ao menos configuraria tarefa menor, reconhecer as intercessões que participaram da trajetória de constituição dos conceitos lacaniano, já que a prioridade seria legitimar o fato que “o inconsciente, a pulsão, o desejo, enfim a coisa toda é isso porque assim dixit Freud, ou é aquilo porque assim o corrigiu o dixit de Lacan”[75]

Caso estejamos corretos, ao menos em algum grau, na descrição de tal estado de coisas, não seria nenhuma surpresa imaginar a apropriação e referência aos conceitos lacanianos — decerto monumentos de envergadura na história da subjetividade contemporânea — reduzidas ao estatuto de senhas que permitiriam apenas, como sugerira o próprio Lacan,“a comunhão do grupo (…)[e] o narcisismo das pequenas diferenças que traduziremos em termos mais diretos: terror conformista”[76].

É exatamente em relação a este ponto que desejamos marcar também um lugar, no desenrolar desta dissertação, à elucidação de alguns pontos de encontros e desencontros entre a renovação hegeliana no pós-guerra francês e a constituição do arsenal lacaniano, tal como expusemos. Para além do intuito de tornar visível algumas simultaneidades na emergência das formações discursivas em torno da subjetividade no pós-guerra e da apresentação de alguns problemas e dilemas que impulsionaram a démarche lacaniana — em detrimento dos elogios hiperbólicos ao autor — , tratou-se aqui também de, ainda que de modo incipiente e incompleto, contribuir para atrapalhar o tal “terror conformista”. Pois estamos convencidos de que ele tem no encobrimento da perspectiva histórica e do silenciamento das intercessões, se não as únicas, decerto uma de suas condições de existência.

[1] in: Lacan, J. Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998, p. 69–76. A data de redação do texto coincide com o ano da primeira edição francesa, i.e., 1966.

[2] Badiou, A. “Lacan e Platão : o matema é uma idéia?” in: Um limite tenso — Lacan entre a filosofia e a psicanálise, Unesp, 2002, p.13–14.

[3] Jurainville, A. Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

[4] Simanke, R. Metapsicologia lacaniana — os anos de formação São Paulo: Discurso Editorial, 2002

[5] Ao diferenciar o seminário de ambos, marcando a versão lacaniana com maiúscula, não almejamos, no entanto, atribuí-lo um status de superioridade de qualquer tipo, ou algo que o valha. Além de evitar possíveis confusões homonímicas, desejamos marcar o fato do Seminário lacaniano ter se tornado uma instituição (tanto no sentido da transmissão do ensino, como na instauração de novas relações entre o saber psicanalítico e seus regimes de verdade).

[6] Lacan, J. De la psychose paranoïaque dans sés rapports avec la personalisé Paris: Le François, 1932. Lacan, J. Utilizamos aqui a edição brasileira: Da psicose paranóica e suas relações com a personalidade Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987

[7] cf.Roudinesco, E. Jacques Lacan: esboço de uma vida. História de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.102.

[8] Referimo-nos aos artigos “O problema do estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranóicas da experiência” e “Motivos do crime paranóico: o crime das irmãs Papin”. Ambos constam em apêndice à edição brasileira (op.cit, p.373–380)

[9] Roudinesco, E. Jacques Lacan: esboço de uma vida. História de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.102.

[10] cf. Roudinesco, E Jacques Lacan: esboço de uma vida. História de um sistema de pensamento., p.118

[11] citado por Roudinesco, E. op.cit., p.119

[12] Simanke, R. Metapsicologia lacaniana — os anos de formação, p.398

[13] Kojève, A. Introdução a leitura de Hegel, p.162

[14] Olgivie, B Lacan e a formação do sujeito,, p.110

[15] Não ignoramos a frouxidão do termo e seu longo percurso de apropriações as mais díspares, de Goethe aos esoterismos. No entanto, não desejamos nos furtar de elaborar também a nossa apropriação. Ela se refere ao sentido negativo que confere Michel Lowy em Redenção e Utopia ao termo: “É um conceito que nos permite justificar processos de interação que não dependem nem da causalidade direta, nem da relação “expressiva” entre forma e conteúdo (por exemplo, a forma religiosa como “expressão” de um conteúdo político ou social). (…) Naturalmente, a afinidade eletiva não se dá no vazio ou na placidez da espiritualidade pura: ela é favorecida (ou desfavorecida) por condições históricas ou sociais.” (1989, p.18)

[16] Lacan, J. “A agressividade em psicanálise”, Escritos, p. 121

[17] Expressão, aliás, ausente no discurso de Hegel, porém fundamental no comentário de Kojève.

[18] Lacan, J. “Formulações sobre a causalidade psíquica” , Escritos, p.172.

[19] Lacan, J. “Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinug” de Freud”, Escritos, p.374

[20] Lacan, J. “Os complexos familiares na formação do indivíduo” in: Autres Écrits, p.

[21] Kojève, A. Introdução à leitura de Hegel, p.11

[22] Simanke, R Metapsicologia lacaniana — os anos de formação, p. 348

[23] Há quem defenda, inclusive, que o conflito insolúvel entre esses dois pólos seria, em última análise, uma das propulsoras da démarche lacaniana — em suas viradas, em seus momentos de substituição ou de justaposição dos quadros referenciais e respectivos interlocutores. Para um aprofundamento desta interpretação, consultar Lima de Almeida, J.J.R A compulsão à linguagem na psicanálise: Teoria Lacaniana e Psicanálise Pragmática. Campinas, SP: Unicamp, 2004 [tese de doutorado].

[24] Simanke, R. Metapsicologia lacaniana — os anos de formação, p. 371

[25] Lacan, J. O Mito Individual do neurótico Ornicar (17/18), 1979, p.291–307 [original de 1953]

[26] in: Escritos, p.238–324

[27] cf. Simanke, R. op.cit., p.421–426

[28]cf. Lacan, J. “Intervenção sobre a transferência”, Escritos, p. 214–225 “Em síntese, a psicanálise é uma experiência dialética, e essa noção deve prevalecer quando se formula a questão da natureza da transferência”. No mesmo artigo Lacan dedica-se a elucidar o caso Dora de Freud a partir das “inversões dialéticas” que caracterizariam a “ reinvidicação hegeliana da ‘bela alma’, aquela que se insurge contra o mundo em nome da lei do coração, ‘ Veja’, diz ele [Freud] a Dora, ‘qual é a sua própria parte na desordem em que você se queixa?’ ” (p.218)

[29] Hyppolite, J. “Filosofia e psicanálise” — conferência de 04/03/1959, p. 87

[30] Lacan, J. O seminário livro I — Os escritos técnicos de Freud Rio de Janeiro: Zahar Editores,1979.

[31] Lacan, J. “Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinung’ de Freud”. In: Escritos, p. 381.

[32] Na tradução brasileira da Standard Edition, o termo alemão’Verneinung’ foi traduzido por negativa. (“A Negativa”, Vol.

[33] Hyppolite, J. “Comentário falado sobre a Verneinung de Freud”,p.49

[34] Hyppolite, J. “Comentário falado sobre a Verneinung de Freud”,p.55

[35] Lacan, J. “Introdução ao comentário de Jean Hyppolite”, Escritos , p.375

[36] cf.Hyppolite, J. «L´existence dans la phénomenologie de Hegel », 1946 in : Figures de la pensée philosophique. Paris: P.U.F, 1971. vol.1

[37] op.cit., p. 218. Sobre mais detalhes das diferenças da leitura de Hyppolite em relação a Kojève, ver Hyppolite, J. « La “phénoménologie” de Hegel et la pensée française contemporaine » In: Figures de la pensée philosophique. Paris: P.U.F, 1971, p.235.

[38] Arantes, P. Hegel no espelho do Dr.Lacan, p.47–48

[39] Editado pela P.U.F em 1953. Consultamos aqui a tradução inglesa: Hyppolite, J. Logic and existence, State University New York Press, 1997

[40] in : Revue philosophique de la France et de l’étranger, vol. CXLIV, nº 7–9, julho-setembro de 1954, pp 457–460

[41] Jean Hyppolite foi professor de Deleuze no liceu Louis-le-Grand em curso preparatório para a Escola Normal Superior; vindo a ser posteriormente professor na Universidade de Strasbourg (1945–1948), na Sorbonne (1949–1954) e no Collège de France (1963–1968). Hyppolite orientou com Georges Canguilhem o Diploma de Estudos Superiores que Deleuze consagrou a Hume; a dissertação foi publicada pela PUF com o título Empirisme et subjectivité, em 1953, na coleção “Epiméthée”, dirigida por Hyppolite (edição brasileira: Empirismo e subjetividade, Editora 34,1997).

[42] Deleuze, op.cit, p. 15

[43] Hyppolite orientou com Georges Canguilhem o Diploma de Estudos Superiores que Deleuze consagrou a Hume; a dissertação foi publicada pela PUF com o título Empirisme et subjectivité, em 1953, na coleção “Epiméthée”, dirigida por Hyppolite (edição brasileira: Empirismo e subjetividade, Editora 34,1997). Em diversas ocasiões, Deleuze mencionava sua admiração de estudante por Hyppolite, ao qual, aliás, Empirismo e subjetividade foi dedicado. Da mesma forma, podemos lembrar novamente a homenagem de Foucault a Hyppolite quando assume o lugar deixado vago por sua morte em 1968: “É porque tomei dele, sem dúvida, o sentido e a possibilidade do que faço, é porque muitas vezes ele me esclareceu quando eu tentava às cegas, que eu quis situar meu trabalho sob seu signo e terminar, evocando-o,a apresentação de meus projetos. É em sua direção,em direção a essa falta — em que experimento ao mesmo tempo sua ausência e minha própria carência — que se cruzam as questões que me coloco agora” (in: Foucault, M. A ordem do discurso, p.78–79)

[44] Sen & Lawlor,”Presentation to ‘Logic and Existence’ ”, Cambridge University Press, 2001

[45] Muitos outros elementos ocuparam um lugar determinante no declínio de prestígio do ‘humanismo teórico’ na filosofia francesa do pós-guerra: a denúncia dos crimes de Stálin e a querela do anti-humanismo teórico no âmbito marxista, o debate em torno das então renovadas ciências humanas e o respectivo prestígio do estruturalismo, os movimentos em prol da libertação das colônias francesas, o Nietzsche de Heidegger, dentre outros acontecimentos, os quais abordaremos oportunamente.

[46] Deleuze retoma a questão na seção de Diferença e Repetição intitulada “Lógica e ontologia da diferença segundo Hegel: a contradição”. cf. Deleuze, G. Diferença e Repetição , p.49

[47] Deleuze,G. “Jean Hyppolite, Lógica e Existência [1954]” in: A ilha deserta — textos e entrevistas [1953–1974] , 2004, p.16

[48] Foucault, M. “Jean Hyppolite, 1907–1968,” in : Dits et écrits, I, 1954–1969, Paris, Gallimard, 1994, p. 785.

[49] Hyppolite, J. Logic and existence, p. 230

[50] Hyppolite, J. op.cit, p.31

[51] Hyppolite, J. op.cit., p.74

[52] op.cit.

[53] Deleuze,G. “Jean Hyppolite, Lógica e Existência [1954]” in: A ilha deserta — textos e entrevistas [1953–1974] , 2004, p. 12–16

[54] in: Escritos, p.807–842. apresentado num colóquio promovido por Jean Whal em Royaumont, em setembro de 1960.

[55] cf. Lacan, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”,Escritos, p.238–324.

[56]cf.Lacan, J. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde de Freud”, Escritos, p. 496–533

[57] Roudinesco, E. Jacques Lacan — Esboço de uma vida,história de um sistema de pensamento ,1994,p. 262. Este movimento de crítica e crise do discurso filosófico, a ressaltar seus limites, acompanhará, como veremos em outro momento, o debate em torno do ‘estruturalismo’ e a ascensão das ciências humanas a partir dos anos 50.

[58] Freud, S. “As resistências à psicanálise”, ESB vol.XIX, 263–275

[59] Hyppolite, J. “Fenomenologia” de Hegel e psicanálise, p. 61

[60] Lacan J. “Subversão do desejo e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, p.807

[61] op.cit.

[62] Numerosas são as referências a Hegel em “Subversão do sujeito e dialética do desejo”. O simples nome do filósofo recorre repetidas vezes, especialmente na primeira parte da exposição, superando o de Freud. Por duas vezes é citada a própria Fenomenologia do Espírito, além de alguns de seus termos chaves, Aufhebung, Selbstbewusstsein, Begierde, saber absoluto, sujeito absoluto, astúcia da razão, Mestre absoluto, consciência de si, bem como a famosa passagem da luta do Senhor e do Escravo.

[63] Lacan, J. “Subversão do desejo e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, p.817

[64] Hegel, G.W.F Fenomenologia do Espírito, p. 34

[65] Lacan, J. O seminário vol.V — As formações do inconsciente, p. 30

[66] Soulez, A. “O nó no quadro ou o estilo de/em Lacan” in: Safatle, V. Um limite tenso — Lacan entre a filosofia e a psicanálise, p.255–275

[67] cf. Elia, L. A transferência na pesquisa em psicanálise: lugar ou excesso? Psicol. Reflex. rit. v.12 n.3 Porto Alegre 1999 .

[68] Lacan, J. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956, in: Escritos, p.461–495. O texto testemunha de forma incisiva a ruptura de Lacan com a IPA e os critérios de formação do analista a ela vinculados.

[69] Lacan, J. op.cit., p.464

[70] op.cit., p.

[71] op.cit,p.493

[72] Beividas, W. O estilo em Lacan e a estilística pós-lacaniana , Rio de Janeiro, IP?UFRJ, 1995, p.48

[73] Beividas, W. op.cit , p.33

[74] Beividas, W. O estilo em Lacan e a estilística pós-lacaniana , Rio de Janeiro, IP?UFRJ, 1995, p.40. grifos no original.

[75] op.cit.

[76] Lacan, J Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956, in: Escritos, p.493

--

--

Guilherme Almeida

Doutor em Filosofia (UFRJ); Mestre em Psicologia Social (UERJ); Professor do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro;